Portadores de deficiência enfrentam obstáculos nas ruas de Belo Horizonte

20 de Agosto de 2012 às 09:24
por: Tiago de Holanda

 

Anderson reconhece que vida de deficiente é desafio o tempo todo (Tulio Santos/EM/D.A Press) Anderson reconhece que vida de deficiente é desafio o tempo todo
Anderson de Souza Coelho por pouco não angariou uma vaga nos próximos Jogos Paralímpicos, que começam no dia 29, em Londres. Por estar entre os melhores corredores fundistas brasileiros da classe T11 – a dos cegos totais –, Anderson foi pré-convocado, assim como há quatro anos, às vésperas dos Joos de Pequim, mas foi de novo superado por concorrentes. Sem tempo para lamentar, o rapaz de 28 anos continua treinando seis dias por semana, suando muito por cada centésimo de segundo a menos no cronômetro. Luciana Fortunato foi, por diversas vezes, campeã mineira e nacional de basquete em cadeira de rodas.
Em 1994, integrou a seleção brasileira vice-campeã sul-americana, na Argentina, e, em 1996, participou das Paralimpíadas de Atlanta, nos Estados Unidos. Depois, experimentou outros esportes e conquistou troféus no atletismo – como corredora –, no tênis de mesa e na quebra de braço. Em 2012, aos 40 anos, decidiu retornar à modalidade que mais glórias lhe rendeu. Arremessando à cesta em três dias por semana, tenta reaver a pontaria de antes.
Como qualquer atleta de alto nível, portador ou não de deficiência física, Anderson e Luciana enfrentam dificuldades para melhorar resultados e vencer competições. No entanto, os maiores obstáculos que encaram estão fora das pistas de atletismo e quadras de basquete. Ir de casa para o trabalho, pegar um ônibus ou atravessar a rua costumam ser metas mais complicadas que cruzar a linha de chegada em primeiro lugar ou somar mais pontos que o adversário. O Estado de Minas acompanhou uma tarde de Anderson e uma manhã de Luciana e conta alguns dos desafios da rotina dos para-atletas.
A caminhada de Anderson
“Se eu der umas trombadinhas, é normal, viu?”, avisou Anderson de Souza Coelho. Na tarde de quinta-feira, ele havia ido “resolver uns assuntos” na Associação dos Deficientes Visuais de Belo Horizonte (Adevibel), cuja sede fica em um  edifício na Avenida Barbacena, no Barro Preto. De lá, com óculos escuros e uma mochila às costas, empunhou sua bengala dobrável de alumínio e caminhou até a estação de metrô Carlos Prates.
Ao andar, Anderson bate com força a ponta da bengala no chão, para ouvir claramente o baque. E faz isso movimentando o instrumento de um lado para o outro, de modo a abranger toda a área de seus passos. Sempre que dá, vai rente à parede, que serve como referência para ele percorrer a calçada sem se desviar da rota. “Quem já nasce cego tem a locomoção melhor. Como fiquei cego há nove anos, não tenho a ‘maldade’, diz ele, que perdeu a visão com 19 anos. Levou um tiro na cabeça: a bala entrou pela têmpora direita, perfurou os dois globos oculares e saiu pela esquerda.
“Se você me larga em qualquer lugar, não sei andar em linha reta. O que me ajuda é que guardo as imagens das coisas na cabeça, mas ainda estou aprendendo a ter noção de espaço.” Ele não usa o piso tátil, que, em tese, serve para orientar pedestres com deficiência visual. “Você não percebe se está ou não nessas ranhuras. Os passeios do Centro são irregulares. Não conheço uma calçada lisinha. Por onde ando, é tudo ruim..”
Apesar de seguir com cautela, as “trombadinhas” não tardam. Na primeira delas, logo ao lado da entrada do prédio da Adevibel, o rapaz bate com a bengala na lateral de um carro estacionado. As pessoas vão abrindo caminho. Com curiosidade e certo pasmo. Na esquina da Avenida Barbacena, quando sente a parede fazer curva acentuada e o passeio sofrer leve declínio, o rapaz sabe que chegou a um semáforo e a uma faixa de pedestres. À beira da rua, fala em voz alta: “Alguém me ajuda a atravessar, por favor”. Tem vez que ele espera alguns minutos até alguém se dispor. Naquela tarde, porém, logo atendem o apelo.
Na terceira esquina, uma mulher oferece o braço para Anderson e o deixa onde ele pede: no acesso à passarela que desemboca na estação Carlos Prates, junto ao corrimão. A partir daí, ele anda com mais segurança, roçando os dedos da mão direita no corrimão e manuseando a bengala com a esquerda. Vez por outra, tromba em alguém que, encostado distraidamente no parapeito, não vê o rapaz chegar.
Antes de entrar na estação, bate as bengalas nas pernas de um homem. “Desculpe”, diz.  Como manda a lei, um guarda da estação o ajuda a seguir até a plataforma e entrar no trem do metrô. O rapaz bate delicadamente a bengala na base de um assento e, ao perceber que está vago, acomoda-se. “São pequenas estratégias que fazem a diferença”, ensina.
Anderson se senta na cadeira mais próxima à porta. Ele já conhece o caminho e, quando o ônibus faz uma curva à direita sabe que é hora de dar seu aviso. Esgueira-se um pouco e diz: “Desço no próximo ponto, fazendo favor, motorista?” O veículo para  na Rua Padre Pedro Pinto, em Venda Nova.  Ele agradece e segue em direção ao condomínio onde mora, na Avenida Doutor Álvaro de Camargo, no Bairro São João Batista.
Em seu edifício, o esportista sobe seis lances de escada até o apartamento onde mora  com a esposa, Izabela Silva Campos, também cega. Naquela quinta-feira, Izabela já estava na Inglaterra, onde vai competir nos Jogos Paralímpicos, nas provas de arremesso de peso. Anderson trabalha como monitor em uma empresa de telemarketing.. “Fui aprendendo a me virar sozinho. Vivo na escuridão, mas sou um cara feliz..”  Para Anderson e outros deficientes físicos, o inferno são os outros. “A gente vive tendo que provar que é capaz, o pessoal não nos dá muito moral. A vida de um deficiente é desafio o tempo todo.”
Luciana se arrisca com a cadeira de rodas no meio dos carros, pois a calçada está cheia de obstáculos (Paulo Filgueiras/EM/D.A Press) Luciana se arrisca com a cadeira de rodas no meio dos carros, pois a calçada está cheia de obstáculos
A rotina de Luciana
“Trocar lâmpada, tirar a cortina para lavar. Só”, Luciana Fortunato lista as tarefas domésticas que não consegue executar. Do resto, garante que dá conta. Por falta de tempo, paga os serviços de uma faxineira um dia por semana. Não raro, a para-atleta varre o quintal, cuida do jardim, tira o mato. “Não quero depender dos outros”, diz.
Há quatro anos, ela e sua gata, Nina, moram sozinhas no Bairro Miramar, no Barreiro. Na casa alugada, os móveis são baixos e quase tudo está ao alcance das mãos de Luciana. Ela faz a própria comida no fogão, também de pouca altura. Na manhã de sexta-feira, pegou a quentinha do almoço antes de sair para o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, que fica no 23º andar de um edifício na Rua Guajajaras, Centro. Lá, trabalha como auxiliar administrativa.
Luciana desce da calçada na pequena rampa de cimento que mandou construir em frente à sua casa e, pelo asfalto, perfaz quase todo o trajeto de 550 metros entre a Rua Grande Úrsula, onde reside, e um ponto de ônibus na Avenida Waldir Soeiro Emrich. Ela não conseguiria seguir pelo passeio, que apresenta uma série de obstáculos incontornáveis: buracos, degraus, árvores, lixeiras. Rachaduras estreitas e quase imperceptíveis bastam para emperrar as rodinhas dianteiras da cadeira.
“O passeio é muito irregular. Já caí muitas vezes. Olha a situação”, aponta um trecho de calçamento despedaçado. “A cadeira não aguenta”. Ela desce três quarteirões da Rua Cruzeiro do Sul com a cadeira empinada. Costuma ir pela borda da via, mas, às vezes, precisa desviar de carros estacionados. Em um momento, para e espera um ônibus passar. Alguns veículos passam a centímetros de Luciana. Diz que nunca se acidentou, mas sabe que é arriscado. “Não tem outro jeito”, conforma-se.
Ela só volta ao passeio a poucos metros do ponto de ônibus, subindo a rampa de uma faixa de pedestres. Sem contratempos, sobe no veículo da linha 3050 pelo elevador para cadeirantes. Passageiros observam Luciana com estranhamento, como se fosse um ser exótico.
Na Avenida Afonso Pena, a para-atleta vai pelo passeio até a esquina com a Rua Timbiras. Lá, não há rampa diante da faixa de pedestres. Luciana procura um ponto em que a descida da calçada para o asfalto seja menos acentuada e atravessa a rua. Volta à calçada, mas, na esquina com a Rua Pernambuco, outro problema: há rampa em uma extremidade da faixa, mas falta no outro lado. Ela torna ao asfalto e, em um movimentado cruzamento, corta a avenida de uma só vez até a outra margem.
Prossegue pela via na contramão – a calçada não possui rampa. Após atravessar a Rua Alagoas, sorri: “Já caí aí”. Refere-se ao passeio entre a Alagoas e a Rua Guajajaras. Para evitar nova queda, sobe a Guajajaras também pelo asfalto. Um taxista, conhecido dela, oferece-se para empurrar a cadeira. “Sempre que estão aí, eles ma ajudam”, diz Luciana. No Edifício Mirafiori, onde fica o conselho, tem que entrar pela rampa da garagem, já que as portas de entrada só têm degraus.
Luciana ficou paraplégica aos 13 anos. “Por uma semana, tive febre, cansaço, dor nas costas. Uma tarde, me deitei e não consegui me levantar mais”, lembra. No médico, descobriu um abscesso na coluna. Nos primeiros anos, foi difícil se ajustar à cadeira de rodas. “Eu tinha muito medo. Medo de cair, de ter vontade de ir ao banheiro e não ter um adaptado.” Às vezes, não tem mesmo. “O jeito é segurar a bexiga”, ri com naturalidade, balançando as mechas loiras.
Quadro de medalhas
A cada quatro anos, após as Olimpíadas, entram em cena os Jogos Paralímpicos, em que competem pessoas com deficiência física ou intelectual. Neste ano, a 14ª edição do evento deve reunir mais de 4,4 mil atletas de 166 países, distribuídos em 21 modalidades, de acordo com o Comitê Paralímpico Internacional. O Brasil é uma potência no evento e, na última edição, a de Pequim, ficou em 9º lugar no quadro de medalhas, com 16 de ouro e 47 no total. Segundo a Secretaria de Estado de Esportes e da Juventude, Minas será representada por 16 atletas: cinco no atletismo, cinco na bocha, três no tênis em cadeira de rodas, um no halterofilismo, um no judô e um na esgrima.
 
 
Fonte: Estado de Minas

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